Topo
Notícias

Berçário de cobra e choque na aranha: como veneno vira soro no Butantan

do UOL

Do UOL, em São Paulo

04/06/2025 05h30

Dentro de salas com 17 mil escorpiões, 13 mil aranhas e centenas de cobras em caixas organizadoras nasce o antídoto para a maioria dos incidentes envolvendo animais peçonhentos do Brasil. O Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo, é casa desses bichos e local de trabalho de biólogos, técnicos, veterinários e muitos outros profissionais que salvam vidas fazendo ciência.

O que aconteceu

Doze soros diferentes são produzidos no Butantan, oito deles para situações envolvendo animais peçonhentos. Para se criar o soro, os venenos das cobras, aranhas e escorpiões são retirados, purificados, diluídos em antígenos e istrados em cavalos. Os anticorpos produzidos pelos equinos são coletados pelo plasma do sangue, am por uma planta industrial e, após uma série de controles de qualidade, viram frasquinhos de antídoto, distribuídos para todo o país.

Como o veneno vira antídoto - Ilustrações de Rodrigo Cunha/UOL - Ilustrações de Rodrigo Cunha/UOL
Imagem: Ilustrações de Rodrigo Cunha/UOL

O mesmo animal que causa o acidente gera o produto que vai salvar a vida. É um ciclo que começa com o bicho e termina com o bicho.
Fan Hui Wen, diretora técnica de produção de soros do Butantan

Para fazer 30 litros de soro é necessário, em média, 300 litros de plasma. Isso torna a extração dos venenos essencial e exige que uma equipe grande e qualificada trabalhe na manutenção dos bichos.

Dois técnicos para uma aranha: como os venenos são retirados

Extração de veneno da aranha marrom é delicada e precisa de dois técnicos - André Nery/Reprodução de vídeo - André Nery/Reprodução de vídeo
Extração de veneno da aranha marrom é delicada e precisa de dois técnicos
Imagem: André Nery/Reprodução de vídeo

O escorpião-amarelo (Tityus serrulatus) é considerado um aracnídeo e "participa" de dois soros produzidos pelo Butantan. Para recolher o veneno dele, um técnico segura o animal pelo rabo com uma pinça, o acomodando na mão nua. Com um movimento ágil, o polegar e o indicador substituem a pinça, imobilizando a cauda, dando um choque no rabo do animal para pingar o veneno em um frasco. Luvas não são necessárias na istração do escorpião, já que o ferrão pode furar o látex.

Para a aranha marrom (Loxosceles), o trabalho é mais delicado e precisa de duas pessoas. Enquanto um técnico segura as patinhas e dá um pequeno choque na região da cabeça (onde fica a glândula de veneno), outro, com uma seringa, puxa a gotinha que se forma. O processo com a aranha armadeira (Phoneutria) é semelhante, mas o cuidado com elas deve ser redobrado. Maiores, os animais também são mais ágeis.

Veneno das aranhas precisa ser congelado rapidamente. O material, principalmente o expelido pela marrom, é volátil e oferece risco aos técnicos se não for armazenado de forma correta. "O veneno é muito alergênico, então, se for inalado, pode causar coriza, deixar os olhos inchados. Por isso a gente coloca no gelo seco", explica Thiago Mathias Chiariello, coordenador de produção do Instituto Butantan.

Com as cobras, o processo de extração do veneno é diferente. Um por um, os animais são retirados das suas caixas e colocados em um tanque com gás carbônico, que os deixa sonolentos. Após "apagarem", eles são manejados por um tecnologista de laboratório, que expõe as presas e, com ajuda das mãos e de uma pinça, faz o veneno fluir para um becker. As cobras corais, que têm presas menores, ficam com pequenos frascos acoplados às presas delas para a retirada.

O manejo das cobras também precisa ser feito por ao menos duas pessoas. É importante que um dos técnicos segure a região da cauda e evitando que, caso o bicho acorde, vire o corpo em direção a quem está segurando a cabeça. Durante a nossa visita ao Butantan, acompanhamos a retirada do veneno de duas jararacuçus. Elas doam 12,5% do veneno que compõe o soro antibotrópico, um dos mais usados, já que acidentes com jararacas são 64% de todas as ocorrências com serpentes no Brasil.

O processo de extração do veneno é estressante para os animais, mas acontece raramente na rotina deles. Em média, o veneno das cobras, aranhas e escorpiões é retirado uma vez por mês. A reprodução deles é monitorada para que haja espécimes suficientes para extração constante.

Butantan - As mais populares - Ilustrações Rodrigo Cunha/UOL - Ilustrações Rodrigo Cunha/UOL
Imagem: Ilustrações Rodrigo Cunha/UOL

Alimentação regrada e calendário: como vivem os doadores de veneno

Os animais que têm veneno recolhido no Butantan não são os mesmos que ficam expostos no museu do instituto. Os "doadores" ficam guardados em salas específicas dentro dos laboratórios de artrópodes e de herpetologia. Nesses locais, tudo é controlado: desde a temperatura das salas até a alimentação, anotada em tabelas pelos biólogos, veterinários e técnicos.

Criadouro de baratas e grilos garante alimento das aranhas e escorpiões. Os insetos são contabilizados e guardados ao lado da sala das armadeiras. Para as cobras, a alimentação varia, indo de camundongos a filhotes de outras espécies, selecionados pelas equipes.

Baratas e grilos ficam "guardados" em salas para alimentar escorpiões e aranhas - Renato Rodrigues/Comunicação Butantan - Renato Rodrigues/Comunicação Butantan
Baratas e grilos ficam "guardados" em salas para alimentar escorpiões e aranhas
Imagem: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan

Coral verdadeira é a cobra que come com mais frequência. Enquanto outras espécies de serpentes comem uma vez ao mês, ela precisa se alimentar a cada duas semanas. Por isso, acaba recebendo uma dieta bem variada, que vai de filhotes de najas até uma "linguiça" feita por veterinários do Butantan com os nutrientes necessários para seu desenvolvimento.

Os dois laboratórios também têm berçários, onde a continuidade das espécies é garantida. Parte das ninhadas vira alimento, mas o resto delas é selecionado para ter o desenvolvimento monitorado e acompanhado pelos técnicos.

Filhote de jararaca-caiçaca em berçário no Instituto Butantan - André Nery/Reprodução de vídeo - André Nery/Reprodução de vídeo
Filhote de jararaca-caiçaca em berçário no Instituto Butantan
Imagem: André Nery/Reprodução de vídeo

Locais onde os animais são armazenados têm o tamanho ideal para eles. Os técnicos do instituto tentam preservar algumas características na manutenção dos bichos, como colocar camadas de serrapilheira nas caixas das cobras corais, ou evitar o contato constante de aranhas com outras espécies para evitar o canibalismo entre elas.

As aranhas são seres que preferem viver isoladamente. São animais solitários, que na natureza não têm convívio com outros animais. O escorpião tem uma vida coletiva, no nosso biotério são mantidos em viveiros coletivos.
Fan Hui Wen, diretora técnica de produção de soros do Butantan

Boa parte dos animais chega ao Butantan trazidas por órgãos de São Paulo e de outras cidades do país. A pluralidade dos bichos no acervo da instituição é importante porque torna o veneno mais completo, já que espécies semelhantes terão comportamentos e dieta diversas em partes diferentes do Brasil, o que pode afetar o veneno.

Jararacas e cascaveis são comuns para nós, então não tem por que trazer esses bichos para dentro do plantel se estamos reproduzindo eles em cativeiro há muitos anos. Mas se for uma jararaca e cascavel que não são da Região Metropolitana de São Paulo, ou da área expandida, elas são interessantes, como uma jararaca do Rio de Janeiro, ou uma jararaca pintada do sul de Minas.
Giovanni Perez, biólogo e tecnologista de laboratório do Instituto Butantan

Notícias